A mulher da casa abandonada

E a casa abandonada que é o Brasil.

Marina Martins
4 min readJul 13, 2022

A mulher da casa abandonada é um podcast da Folha de São Paulo, feito por Chico Felitti, que conta a história por trás da mulher que vive em uma casa abandonada, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.

Ela é Margarida Bonetti, foragida do FBI há vinte anos por ter cometido um crime junto com seu marido, Renê Bonetti, nos Estados Unidos: o de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por mais de vinte anos. A casa abandonada onde vive Margarida é uma das heranças de sua rica família.

O podcast investiga o que está por trás disso, desde as heranças até o paradeiro de Renê, que cumpriu pena pelo crime nos Estados Unidos, passando por casos semelhantes aos da vítima. Chico responde às nossas perguntas: “e a vítima? Como ela está?” “Por que Margarida nunca foi presa?” Para essas e outras inquietações, e pelo trabalho e a narração preciosos de Chico, recomendo escutar o podcast.

A repercussão da história tem me chamado muito a atenção. Como Chico fala em entrevista ao podcast Um milkshake chamado Wanda, seu podcast é, acima de tudo, sobre privilégio. Privilégio de raça, de classe e como isso se perpetua no Brasil.

Privilégio que permite que uma criminosa viva em uma casa, sem nunca ter sido punida por seu crime. Privilégio que, como bem apontou a jornalista Rosane Borges em uma publicação no Instagram, permite que o corpo de Margarida ocupe uma casa e a transforme em um lugar insalubre, o que jamais seria permitido por outros corpos em um bairro que se opôs à construção do metrô porque traria “gente indesejada”.

Privilégio que permite que esta mulher ali viva e que chame a polícia por qualquer incômodo, sem que nada aconteça com ela, em um país que criminaliza a ocupação de imóveis abandonados — mesmo que, nesse caso, ao contrário de transformar esses locais em insalubres, o que acontece é justamente o inverso. Pessoas sem teto dão vida a locais mortos.

Quando comecei a ouvir o podcast, imaginei uma série de ficção. Agora, já no sexto e penúltimo episódio, penso que o lugar dessa história é o documento. Ficcionalizar seria transformá-la em espetáculo e, talvez, apelar para cenas de violência que não precisam mais ser produzidas e perpetuadas no audiovisual e no nosso imaginário.

Não que essa história já não tenha virado espetáculo. A casa abandonada virou ponto turístico e cenário para vídeos de TikTok. Virou casa no jogo The Sims, com Margarida como personagem. Posso estar me tornando cada vez mais amarga, mas me impressiona como o público consegue rir disso tudo, sem que seja de nervoso.

É fato que a excentricidade de uma mulher sozinha em uma casa abandonada chama a atenção, mas, à medida que o caso se aprofunda no podcast, o que me espanta não é isso. É o silêncio de quem viveu na mesma rua de Renê e Margarida nos Estados Unidos, que perpetua até hoje quando dizem que nada sabem sobre o ocorrido. É o episódio “Outras tantas mulheres”, que fala de casos como os da vítima dos Bonetti e entrevista Madalena, que passou 38 anos em condições de exploração.

Escutar A mulher da casa abandonada é se confrontar o tempo todo com o privilégio. É saber de que local, socialmente falando, estamos escutando sobre uma mulher e um homem que, assim como outras patroas e patrões, alegaram que não exploravam as empregadas domésticas porque “são quase da família”.

O “quase da família” tão brasileiro, que coloca a trabalhadora “no lugar dela”, da expressão escravagista “ponha-se no seu lugar”. O lugar dos calados, marginalizados, subservientes.

“Quase da família”, como Val, personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta (Anna Muylaert), a empregada doméstica que era “como uma mãe”, que “ajudava a patroa a cuidar do seu filho”, sem poder sentar-se à mesa com os patrões, enfrentando fronteiras imaginárias em uma casa.

“Quase da família”, como as “amas de leite” ou “mães-pretas”, mulheres escravizadas que amamentavam e criavam os filhos dos senhores de engenho.

“Quase da família”, como você já ouviu alguém dizer, ou como você já pode ter dito.

Se a história contada em “A mulher da casa abandonada” virasse ficção, então só há um final possível: inspirado em filmes de Tarantino. E para a personagem de Margarida no The Sims: que a joguem na piscina e tirem a escada.

Tenho a ideia de escrever esse texto na mesma semana em que um crime toma conta de toda a imprensa e as redes sociais no Brasil: um médico anestesista estuprou uma mulher em trabalho de parto. Por que estou falando disso? Porque há semelhanças.

Estou falando de crimes que colocam mulheres em posições de vulnerabilidade, opressão, passíveis de domínio, exploração, violência física, psicológica e sexual. Algo que é praticado mesmo por outras mulheres, pois há corpos ainda mais suscetíveis à violência e à marginalização do que outros. A classe a a raça não podem ser isoladas de nenhum debate no Brasil, pois, assim como o gênero, isso faz com que uns corpos importem mais e outros, menos.

O estuprador ganhou milhares de seguidores no Instagram e várias contas fakes. Se Margarida Bonetti decidisse criar redes sociais, postar fotos e vídeos da casa, criar um canal… ela também seria seguida. Tudo vira um grande espetáculo mesmo que, no fundo ou acima de tudo, estamos tratando de criminosos.

Criminosos, vítimas e espectadores disso tudo nessa casa abandonada que é o Brasil.

Marina N. Martins

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Marina Martins

Roteirista, escritora, cineasta, fotógrafa, carioca, 27 anos. No Instagram: eumarinanina | corpocru | ninanmartins