Gasolina neles

Marina Martins
3 min readFeb 1, 2022

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Quadro do clipe de ‘Gasolina’— Teto Preto

Foi em 2012 que eu soube que existiam refugiados no Brasil.

O tema da redação do ENEM pegou todo mundo de surpresa: o movimento imigratório no Brasil. O texto de apoio falava do caso dos haitianos. Que? Nunca falaram isso pra gente na escola. A gente não se preparou para isso. Haitianos no Brasil? Como assim? Do que falar?

Foi em 2015 que Jair B0ls0nar0 se referiu aos refugiados que chegam ao Brasil como escória do mundo. Escória: desprezível; irrelevante; subproduto; insignificante; indigno.

Foi em 2016 que eu entendi melhor a vida de alguns refugiados no Brasil.

Quando assisti a ‘Era o Hotel Cambridge’, no Festival do Rio — filme que, três anos depois, foi um dos objetos de análise da minha dissertação de mestrado, onde falo de “como o cinema brasileiro de hoje destaca a ocupação e a resistência dos corpos nos espaços, diante da realidade sociopolítica brasileira atual”.

Foi em 2017 que, na França, me tornei imigrante. Pela primeira vez na vida, meu corpo passou a sofrer outros tipos de violência e preconceito além da misoginia. Perdi certos privilégios que tenho no Rio de Janeiro, lugar que só pode me atingir fisicamente por ser mulher, feminista, de esquerda e bissexual. Não mais que isso. Não que isso seja pouco. Mas está longe de ser o pior.

Foi vivendo como imigrante que conheci outros imigrantes, refugiados ou não. Que meu ex-namorado lamentou que, ao deixarem a Costa do Marfim, sua mãe passou a cuidar de bebês brancos europeus. Que conheci os tunisianos Aziz e Niza, que falam rindo de xenofobia. A gente aprende a rir da desgraça para escapar da crueldade. Que conheci o curdo Resat, de um povo que não é considerado nem nos próprios países dos quais o território do Curdistão faz parte. Quando me perguntou porque eu tinha ido a Paris, falei de sonho. Quando perguntei a ele, falou: “quando se é refugiado, não temos muita opção: pra Alemanha, vai quem quer trabalhar. Pra França, quem quer estudar. Eu queria estudar.” Enquanto eu falava de sonho, ele falava de fuga e de que cortou os cabelos e tirou a barba para fazer o visto.

Foi em 2020, graças ao Abraço Cultural, que tive ainda mais contato com a realidade dos refugiados no Brasil, por conta de Ender e Gustavo, meus professores de espanhol venezuelanos.

Foi em 2022 que o jovem, congolês, preto, refugiado, trabalhador Moisë Kabagambe foi assassinado na Barra da Tijuca. Bairro onde viviam o presidente-escória, sua família-escória e seus protegidos-criminosos-escórias, que tratam como descartáveis vidas que têm renda, cor, gênero, orientação sexual, nacionalidade específicos. Um, outro ou tudo junto.

Somos uma cidade dominada pela escória. Um país governado pela escória. Desde 1500, somos a história regida, massacrada e engolida pela escória. Governos de direita, de esquerda, os alvos são sempre os mesmos. Não sei que forças ainda temos e teremos para sonhar. Mudar. Viver.

“Eu não acreditava em sonhos, em mais nada, apenas a carne me ardia e não eu me encontrava. Gasolina neles. Eu sou uma metralhadora em estado de graça”.

Trechos de ‘Gasolina’ — Teto Preto

*Estado de graça: estado, geralmente temporário, em que se recebe a benevolência ou a simpatia de outros. Uma pessoa nesse estado vive na amizade e amor de Deus e vai para o Céu, sem estar manchado pelo pecado mortal.

Marina N. Martins

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Marina Martins

Roteirista, escritora, cineasta, fotógrafa, carioca, 27 anos. No Instagram: eumarinanina | corpocru | ninanmartins