Medo

Marina Martins
3 min readJun 26, 2022

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Há anos eu tenho medo de ser estuprada.

Não posso dizer que sempre tive esse medo, porque não é verdade. Quando pequena, não pensava nisso. Nenhuma menina — e nenhum menino — deveria ter de pensar nisso. Comecei a pensar quando passei a andar sozinha na rua e meus pais ficavam preocupados. Os homens mexiam comigo, me diziam coisas nojentas, sussurravam em meu ouvido. Eu era só uma menina, que morria de medo de reagir e tentava cobrir meu corpo com casacos amarrados na cintura pra ver se isso diminuía os assédios.

E então vieram as festas. Teve um desconhecido que passou a mão na minha barriga em uma matinê. Eu achei graça, não sabia que aquilo era uma forma de invadir meu espaço e se apropriar de meu corpo sem minha permissão. Tinham os caras que me abordavam e só saíam, a contragosto, quando eu dizia que tinha namorado. Porque o meu “não” nunca bastava. Aí teve um cara que apertou meus peitos.

Tiveram os blocos de carnaval e o motivo de eu querer parar de frequentar. Não aguentava mais tantos assédios, que aconteciam até com meu ex-namorado ao meu lado. Esse ano mesmo um desconhecido me deu um beijo no rosto — e provavelmente só o fez porque não viu que eu estava com meu namorado.

Teve a loja em que trabalhei e era diariamente assediada por dois caras. Mas eles eram tão lindos. Tão lindos, que eu me sentia… desejada. Tantos anos de namoro, aparelho nos dentes que me faziam sentir feíssima e aqueles caras lindos me querendo? Pô, eu tava que tava!

Até que um deles fechou a cortina da cabine onde eu estava sentada e tirou a blusa. Até que ele esfregou o p*u na minha bunda pra passar porque “não tinha espaço”. Até que o outro, quando eu disse “para”, ele respondeu: “você sabe que quanto mais você pede pra parar, mais da vontade de continuar, né”. Até que ele pediu um beijo se eu quisesse descer do estoque, enquanto bloqueava meu caminho na frente da escada. Até que descobri que eles estavam fazendo um joguinho um com o outro pra ver quem conseguia fazer com que eu traísse meu ex-namorado.

Na época, eu ainda não entendia a dimensão disso tudo. Fui entender anos depois, conversando com meu ex, contando enfim o que eu escondi dele na época, e chorei. Chorei muito. Ele me deu todo o apoio que disse que poderia ter dado anos atrás. Mas eu não entendia. Ali, mais de quatro anos depois, eu percebi o que tinha de fato acontecido e entendi porque eu não contava nada. Achava que estava confusa com meus desejos e, anos depois, vi que a confusão era muito maior.

Eu tenho medo. Eu tive medo saindo com caras, podiam ser amigos de amigas, ou até conhecidos meus — não importava, eu tinha medo de me drogarem, tirarem fotos, filmarem, me estuprarem. Quando mais nova, descobri que mesmo entre casais havia estupro, então tive medo até de que meu ex-namorado fizesse algo. Pelo menos isso eu confessei para ele.

Quando vivi em Paris, eu não tinha medo que me assaltassem nas ruas desertas, mas tinha medo dos homens sozinhos. Eu tenho medo de pegar Uber de noite. Medo de andar na rua. Em uma das primeiras vezes em que estive nua na cama com meu namorado, me toquei do quão entregue estava no momento, que tive medo. Vai que ele faz alguma coisa. Não sei. Não conheço ele.

Nesse país, muita gente sabe o que é viver com medo. Travestis viados sapatões bissexuais pessoas trans pretas pobres mulheres. Cansa dizer “o meu corpo é meu” ou o clássico e exaustivo “meu corpo minhas regras”, porque não é verdade. Se eu engravidar e quiser interromper, a regra é do Estado. Se um homem toca em mim sem meu consentimento, o meu corpo não é meu. Quando divulgam a p*rra de um estupro e as pessoas julgam o que uma mulher, que engravidou de um crime, faz com o bebê, o corpo não é dela.

É desesperador ser tão descorporificada. É confuso equilibrar medo e revolta e ainda ter que ouvir e ler m*rda de gente m*rda. O país está apodrecido e o mundo, putrefato. Como disse meu namorado, está na hora dessa gente podre sentir medo, ter medo de sair de casa por conta dos crimes que cometem com seus corpos e suas falas. A gente não aguenta mais viver assim. A gente não pode mais viver com medo. Esse medo não tem que ser nosso.

Marina N. Martins

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Marina Martins

Roteirista, escritora, cineasta, fotógrafa, carioca, 27 anos. No Instagram: eumarinanina | corpocru | ninanmartins